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Anteprojeto da reforma do Código Civil brasileiro: real modernização ou puxadinho estético?

Em 1° de janeiro de 1916 entrava em vigor a lei 3.071, que instituía o “Código Civil dos Estados Unidos do Brasil”. Ao promulgá-lo, o Presidente Wenceslau Brás trouxe à luz um sonho há muito acalentado por inúmeros juristas nacionais – por todos cito Teixeira de Freitas: dar à nova República, logo adiante chamada de “Velha”, uma roupagem jurídica genuinamente sua, que contemplasse e regulasse os direitos e deveres que regem as pessoas, os seus bens e as relações inerentes a elas, o que se costuma chamar de Direito Privado.

No último artigo de seu texto, o CC1016 trazia a seguinte disposição: “Art. 1.807. Ficam revogadas as Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes às matérias de direito civil reguladas neste Código”. Os termos mencionados para identificar os diplomas e regras que doravante não mais disciplinariam o cotidiano das relações jurídicas privadas no país que, se hoje soam estranhos a muitos porquanto remetem aos tempos em que o Brasil era, com “z”, colônia de Portugal e, depois, um Império fruto da vontade de alguns poucos, eles permaneceram escondidos e encrustados em nossas práticas e cultura, sua essência contaminando outros tantos diplomas legais e, principalmente, suas aplicações.

O orgulho de termos nossa própria legislação civil ufanava aqueles republicanos e outros de então em diante mais chamados de fidalgos, ainda que conservassem os derivativos desses rótulos de nobreza, que impregnavam a casta social dominante, a elite nacional: fazendeiros, grandes comerciantes, industriais, militares, políticos e profissionais liberais, esses últimos divididos em dois grupos, o primeiro, dos filhos da aludida plutocracia, que ostentavam títulos acadêmicos que os recursos de seus pais não permitiram a esse, e o segundo, daqueles que os alcançaram num misto de esforço vocacional e caminho único para livrá-los de trabalhos considerados menores.

O Brasil de então já havia passado por duas Constituições, aquela outorgada por Pedro I, em 1824, e a em vigor, elaborada em singelos três meses até sua promulgação em 1891, atendendo à demanda dos que entendiam não soar bem uma novel República cujo pilar central tendo era um diploma feito na aurora do Império, e, mais ainda, disposta pelo mandatário máximo, fruto de suas conveniências políticas e valores pessoais.

Interessante pensar que essa Constituição, a primeira da nova nação, desfraldou conceitos e estabeleceu algumas regras, princípios e fundamentos os quais, cento e trinta anos depois, muitos insistem em desdenhar, como a separação entre Estado e Igreja, o fim do chamado Poder Moderador, a garantia do ensino fundamental (lá chamado de primário) obrigatório e de qualidade e o voto universal, ainda que esse sugerido o universo fosse restrito a poucos brasileiros, a liberdade de culto e a proibição do uso de títulos de nobreza para diferenciar os cidadãos.

Aquele Código Civil, o de 1916, teve inspiração nitidamente liberal, conceito à época restrito a poucos juristas e filósofos, em grande parte habilitados cientificamente a debatê-lo, ao contrário do que se vê nos nossos dias, quando liberalismo é tema tão pedestre quanto o futebol de domingo, povoando discussões entre quem dificilmente consiga defini-lo sociológica, econômica ou politicamente. Essa inspiração gerou um texto que prestigiava o individualismo, o patrimonialismo, o positivismo. Nas palavras de múltiplos juristas, três eram seus principais protagonistas: o marido, o contratante e o proprietário.

Em 1934, uma nova Constituição, inspirada nas Cartas do México e na da República de Weimar (que durou até Hitler, em 1943, decidir jogar fora de suas quatro linhas e simplesmente revogá-la), trazendo em seu preâmbulo os motivos de sua edição: “organizar um regime democrático, que assegure à Nação, a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico”.

Poucos anos após, em 1937, Getúlio Vargas instalou o Estado Novo, fechou o Congresso e cassou alguns Ministros do STF, os quais apelidava comunistas, inspirou-se na “Carta Del Lavoro” de Benito Mussolini e outorgou uma nova Constituição, de vida curta, já que em 1946, derrubado o regime fascista-tropical do gaúcho de botas, o Congresso promulgou novo texto, devolvendo a independência ao Legislativo e ao Judiciário, restabelecendo o equilíbrio entre esses poderes e o Executivo, também reconhecendo maior autonomia a Estados e Municípios.

Como diz a letra da música do artista Zé Geraldo, o Código Civil e 1916, não obstante tamanhas e diversas as mudanças dos eixos político, social e constitucional, permaneceu “na praça, dando milho aos pombos”. Os anos foram-se passando, algumas tentativas de golpe, espécie de esporte nacional, frustraram-se, até que em 31 de março de 1964, essa ignomínia criminosa vingou, solapando liberdades, vilipendiando a sociedade, alçando a tortura e o extermínio à ordem do dia.

Pouco tempo adiante, em 1967, quando a vergonha contida dos usurpadores já se sublimara pelo júbilo dos elogios, incentivos e apoios de seus mesmos inspiradores e beneficiários, foi jogada no colo dos brasileiros uma nova Carta, que anunciava-se como regramento adequado a institucionalizar o regime militar, aumentando o controle do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário, recriando uma hierarquia estatal centralizadora, enfraquecendo o princípio federativo, subtraindo, criminosamente, direitos fundamentais e garantias individuais, por fim apequenando a autonomia política dos Estados e Municípios.

De maneira paradoxal e hipócrita, ao anunciar seu advento ao país, o general inquilino do Planalto declarou que a Constituição era “moderna, viva e adequada”, três palavras que, ao rés da realidade daqueles tempos, mostravam-se seus antônimos perfeitos. Em 1972, o Reitor da Universidade de São Paulo, jurista Miguel Reale, apresentou o Anteprojeto de Reforma do Código Civil Brasileiro, trazendo algumas inovações, sinalizando a quebra de alguns paradigmas insculpidos no texto em vigor, urdido ainda sob a sombra da escravidão, que, pelo menos oficialmente, encerrara-se pouco tempo atrás.

Também buscava-se fugir dos conceitos positivistas de outrora, jogando luz sobre algumas mudanças na composição da sociedade brasileira, reconhecendo e positivando diversos costumes, sinalizando um tênue ensaio da passagem do Estado Liberal ao Estado Social, e, ao cabo, flertando com valores e princípios como o da autonomia das vontades, o abuso do direito, a função social da propriedade, ainda hoje bastante exorcizados por diversos setores dessa nossa Pindorama.

Lembro que muito embora desenhado ainda em 1969, na adolescência do Golpe de 64, trazido à lume enquanto anteprojeto em 1972 e apresentado formalmente ao Congresso Nacional em 1975, ficou dormitando nos escaninhos do Congresso Nacional, apenas tornando aos debates em 2001, quando foi aprovado e publicado, entrando em vigor no ano seguinte.

Em breve exceto de experiências pessoais, quando criança tive a oportunidade de viajar ao Rio de Janeiro de avião, pousando no Galeão e tomando as vias então existentes para deslocar-me ao centro daquela cidade. No caminho, a paisagem revelava, de um lado, algumas construções bem conhecidas, como a Igreja da Penha e o prédio, construído em estilo mourisco, da Fiocruz. De outro, o imenso mangue que existia à beira da Baía de Guanabara, com barcos flutuando e os esqueletos de outros já em desuso, depositados ao relento, além do cheiro característico e algumas garças por ali voando.

Cerca de quarenta anos depois, a convite de um cliente que fechara importante negócio em Petrópolis, fui com ele de helicóptero até aquela cidade. Lá do alto pude constatar a enorme mudança que a região sofreu, com centenas de milhares de casas, casebres, ruas e vielas ocupando o que outrora era uma área vazia. Nesse ambiente destacavam-se concentrações populacionais apelidadas de “Complexos”, como os da Maré e do Alemão, que abrigam também suas centenas de milhares de pessoas, a esmagadora maioria gente de bem, muito embora ninguém os desconheça dominados por quadrilhas e facções. O termo “civil”, ali, significa apenas o contrário de “militar”.

Códigos e suas regras, eles os têm aos milhares, nenhum deles publicado no Diário Oficial da União: entram em vigor imediatamente, sua eficácia é, literalmente, instantânea. Lá fala-se em um dialeto próprio, também circula moeda própria, e proliferam costumes que se alteram, muitas vezes, de uma semana para outra. Papel ali tem diversas significâncias, seu valor não necessariamente representa o que neles se escreve.

De pouco valem registros, carimbos, firmas reconhecidas. Modelos de família ideal, limites de vizinhança, regras de consumo, forma em que as sucessões se operam, variam conforme a conveniência e a convivência, e contratos são comumente assinados ou pagos com sangue. Tampouco é objeto de debate a tal autonomia de vontades, eis que poucos são os que as podem ter, e questões como honra, moral, imagem e perspectivas destoam dos daquelas resenhas realizadas em ambientes refrigerados.

São “Brasis” dentro do Brasil, incontáveis, rurais e urbanos, secos ao extremo, ou molhados em demasia. Um Código Civil (como também seus “irmãos” de índole material ou processual) é um grande galho que sai de um tronco que metaforicamente aprendemos a chamar de Constituição. Muitos deles se esgalham à medida que as especializações assim o requeiram, mas todos são vocacionados a regular e modular direitos. Para todas as folhas, que são as personagens finais dessas estruturas, pouco valem a frondosidade ou a beleza plástica do conjunto, quando a seiva não lhes alcança durante seu curto espaço existencial.

Do ano de 2002 até agora, a evolução dos tempos, dos costumes e a tecnologia geraram e gestaram um sem-número de transformações na sociedade brasileira e a modernização dos instrumentos legais é medida que se impõe. Qualquer trabalho de vulto científico, como é de se esperar que seja esse que desaguará na reforma do Código Civil, não pode prescindir de discussões aprofundadas e contextualizadas do tema, levadas a efeito por técnicos experientes e impregnados do propósito de produzir, atualizar e melhorar um texto que tanto afeta o cotidiano de nossa gente.

Todavia não pode fugir à realidade, ou à essência de sua razão de existir, ao risco de mostrar-se tão somente cosmético, apenas emprestando roupagem sofisticada ao corpo nu que reveste. Não há lógica em regular e emoldurar direitos antes deles serem efetivamente assegurados, tampouco há em repaginar uma máquina que não funciona. No âmbito da Literatura, o “Parnasianismo”, movimento que teve início no mesmo ano de promulgação do Código Comercial Brasileiro (1850), tinha como características principais o preciosismo, a objetividade e a impessoalidade, a arte pela arte, o apego à estética e o culto à forma.

Ao legarmos simplesmente a cargo de Comissões e demais nomenclaturas usadas para garantir imponência e prestígio a seus integrantes, o papel de decidirem e produzirem as alterações e intervenções que esse vital instrumento jurídico merece e necessita, terminaremos tendo em mãos, novamente, uma espécie de “libreto” de uma ópera famosa, ensaiada e apresentada em festejado teatro, ao cabo da qual seus restritos e especiais convidados felicitam-se uns aos outros pela oportunidade de apreciarem a bela obra, despedem-se até o próximo evento, e saem às ruas, onde os códigos e regras em vigor são outros, alguns não publicados e, outros, impublicáveis.

Entidades da sociedade civil, e não apenas aquelas de tecitura jurídica, precisam se engajar com o vigor necessário e a indispensável honestidade intelectual de seus integrantes, nessa missão.

O Congresso Nacional precisa dedicar a esse certame a energia e o comprometimento que hoje estão dispersos em discussões pueris e desprovidas do elã de cidadania, garantindo uma obra que contribua para o avanço da sociedade brasileira, do alto dos prédios espelhados das grandes artérias metropolitanas ao mais recôndito sítio rural, do contrário vamos reproduzir, e mais uma vez, a velha prática de vermos a maioria dos brasileiros convocados, apenas e tão somente, para recolherem e limparem os salões das festas da República engalanada, perdendo novamente a chance de subirmos um degrau na escada do desenvolvimento, da justiça social e da igualdade.


Por Gustavo Varella Cabral

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